Mãos Vazias


Numa noite qualquer, sem data na memória, sem idade guardada, a cena com pequenas nuvens iluminadas ao redor da luz de uma lua cheia ainda persiste em mim Tenho várias noites assim na recordação. Ainda hoje, quando sento-me para meditar, quando quero acalmar e rejuvenescer o espírito, eu puxo dessa memória e vejo-me a observar essa cena. Não consigo descrever fielmente para os outros essas sensações. 


O vento morno balançando a minha franja, a pele fresca, a minha cabeça deitada em cima dos braços, na janela — o bairro onde cresci surge inteiro diante de mim. Noites silenciosas, exceto pelo eco dos cães que ladram ao longe e dos carros que passam pela rodovia Presidente Dutra. Uma lua tropical, impossível de se ver daqui de onde estou. 


O Jardim Esplanada está tão longe. 


Quando medito, eu troco a cena da janela do meu bairro pelo deserto. A casa eu troco por uma construção rústica e retangular de pedra com cerca de 4 metros de comprimento e 3 metros de largura. Construo à frente uma varanda de um metro e meio com pilastras e telhado de madeira. Saio do meu templo, dou dois passos sobre a varanda e sento-me num dos três degraus que terminam na areia — que está sempre macia e morna, apesar da noite. Às vezes afundo ali os meus pés descalços.


Diante de mim tenho a imensidão do deserto e ao fundo, a cerca de três palmos acima do horizonte, vejo essa lua cheia cercada de pequenas nuvens. Abaixo, quase a encostar no horizonte, vejo uma linha de nuvens muito distantes que de vez em quando se iluminam com raios. Essas nuvens, quando se acendem, parecem ter um tom rosado e cinza. Não ouço trovões. Só vejo os flashes dos relâmpagos dentro delas. Vez por outra sou capaz de sentir a lufada de um vento mais húmido. Vem de lá, desses raios, daquelas nuvens distantes. 


É uma cena tropical que eu vi muitas vezes. Uma cena que me dá paz, por isso levei-a para lá.


Por vezes adiciono algumas variantes: silhuetas de pessoas ao longe atravessando o deserto enquanto conversam algo para mim ininteligível; um falcão escuro atravessando o céu noturno; o som do vento no meu ouvido esquerdo…


Terminada a sessão e inspiro profundamente. Seguro a respiração enquanto absorvo o cenário de volta para mim. Em seguida expiro suavemente e depois de alguns segundos abro os olhos.


Eu nunca tenho quase nada. Compro coisas — mais tarde eu tenho de vendê-las. Aprendo facilmente novas profissões, crio novos projetos — mais adiante eu preciso reformular a vida toda. Qualquer coisa se nos esgota. Tudo flui. E quase nada disto importa de verdade. Não me apego muito às coisas materiais. Por isso desfaço-me delas frequentemente. Incomoda-me vê-las sem uso, encostadas. Mas essas cenas que tenho guardadas são o meu tesouro imperecível. Todo o meu ouro mantêm-se sempre polido através da meditação, da visualização criativa, da retenção e transmutação desses sentimentos. Gosto de reciclar memórias.


Lembro-me constantemente de um excerto de um livro que nunca li e que se chama, curiosamente, «Las Voces Del Desierto», da escritora Marlo Morgan. Um excerto que conheci assim, solto, através da citação de um amigo de há muitos anos e que nunca mais vi, e que se tornou quase um lema de vida para mim. Diz assim:


«Naci con las manos vacias, morire con las manos vacias. He visto la vida en su maxima expresion, con las manos vacias.»


Sim. Que verdade. Eu também nasci com as mãos vazias. Morrerei com as mãos vazias. Tenho visto a vida em sua máxima expressão com as minhas mãos vazias. Uma lua cheia, algumas nuvens, o silêncio da noite. O vento. Nada disso me cabe nos braços.